Garimpos ilegais e as áreas de fronteira no Norte do Brasil

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Destruição X alternativas de desenvolvimento para a região

Problema que há anos assola a região Norte do Brasil, a atividade ilegal em garimpos vem ganhando ainda mais repercussão frente a imagens publicadas na mídia em 2021. Não é à toa: Segundo pesquisa do MapBiomas (Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil), em 10 anos a atividade avançou 495% em terras indígenas e 301% em unidades de conservação ambiental. Segundo dados da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), de 2020, grande parte dos garimpos ilegais mapeados estão em Roraima e estados fronteiriços, além de ocuparem a faixa de fronteira com a Venezuela, Colômbia, Guiana e Guiana Francesa.

O mapa mostra os pontos onde foram identificadas atividades ilegais de mineração.
Fonte: Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG)

Os dados da RAISG foram organizados a partir da identificação de garimpos em áreas pertencentes a terras indígenas e unidades de conservação e também onde não havia licença para lavra garimpeira.

Mapa mostra as áreas de exploração de ouro e movimentação de garimpeiros na região das Guianas.
Fonte: Brenda Farias da Silva e Gutemberg Vilhena Silva (2020).

Este outro mapa mostra as áreas de exploração de ouro e movimentação de garimpeiros na região das Guianas, elaborado pelos pesquisadores Brenda Farias da Silva e Gutemberg Vilhena Silva.

José Roberto Peres, Superintendente da Polícia Federal em Roraima, explicou que na década de 1970 os garimpeiros descobriram o local e, desde então, a maior parte das atividades acontecem ao longo dos rios Uraricoera e Mucajaí, além de seus afluentes. A mineração ilegal ocupa uma extensa faixa que compreende a terra indígena Yanomami e tem sido alvo de constantes operações da Polícia Federal e demais forças fiscalizatórias. Segundo Peres, como são áreas de difícil acesso, as operações são realizadas via aérea e fluvial. Ao encontrarem aeronaves, acampamentos e demais recursos relacionados à atividade ilegal, tudo é inutilizado. “Em 2021 nós conseguimos bloquear via Justiça mais de R$ 50 milhões de bens de garimpeiros e fizemos a apreensão de mais de R$ 60 milhões de itens como balsas, aviões, etc”.

Garimpo ilegal e, à direita da foto, uma pista de pouso para as aeronaves.
Foto: Polícia Federal
As aeronaves encontradas são inutilizadas.
Foto: Polícia Federal
Rios e córregos atingidos pelas atividades relacionadas aos garimpos ilegais.
Foto: Polícia Federal
Aeronaves apreendidas nas operações (quando há a possibilidade de removê-las) Foto: Polícia Federal

Tratar dos diversos temas que envolvem a atividade de garimpagem não é simples. Envolve questões históricas, geográficas, políticas e de condições relacionadas à atualidade, migrações e crises humanitárias e movimenta uma série de crimes e ilegalidades que fazem parte desta atividade. Gutemberg de Vilhena Silva, Geógrafo, Doutor em Geografia e Professor da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), destacou que há vários crimes que têm interface com a atividade garimpeira, dentre eles, o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres. “São núcleos fronteiriços porosos e com pouca fiscalização, tanto por conta da extensão dos limites internacionais quanto pela ausência de um controle sistematizado voltado especificamente para o enfrentamento deste problema”. Uma ação recente que mostra a atuação dos criminosos foi a operação “Open Border”.

Luciano Stremel Barros, Presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF), ressaltou a importância de o Brasil ter uma política de estado para desenvolver a região. “Essa política deve visar a sustentabilidade ecológica, envolvendo as comunidades tradicionais e protegendo a região de forma responsável para a busca de defesa deste território. Se assistimos este cenário de destruição por parte do crime organizado há décadas, o Brasil pode liderar um modelo de exploração legal e sustentável para a Pan-Amazônia”.

A Professora e Pesquisadora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Meire Joisy Almeida Pereira, destacou que a grande problemática é ambiental, com a contaminação de rios e solos. “Há uma degradação evidente no ambiente. E não estamos falando apenas de Roraima, mas da Pan-Amazônia (região que inclui os nove países da bacia)”. Meire também faz uma reflexão sobre as atividades ilegais que ocorrem em terras demarcadas. “Os povos tradicionais, como ribeirinhos e indígenas, tem uma outra lógica de vida, de não acúmulo de capital e de produzir praticamente tudo o que consomem. E são essas pessoas que estão sofrendo profundos ataques. Se formos pensar em termos de crescimento econômico, é possível conciliar a atividade produtiva aurífera, por exemplo, com licença para operação, de forma regulamentada e com oportunidades de trabalho mais dignas”.

Povos tradicionais, como ribeirinhos e indígenas, tem suas terras invadidas por garimpos ilegais.
Foto: Polícia Federal

Dinâmica econômica do garimpo em terras Yanomami

Em tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais, da Universidade Federal de Roraima, em 2020, o Pesquisador Alan Robson Alexandrino Ramos escreveu um capítulo em que descreve a organização de tal atividade no Rio Uraricoera: insumos, trabalho e pessoas envolvidas, remuneração dos garimpeiros, produção e venda do ouro, mercado e preço, dentre outros.
A seguir, serão reproduzidos alguns trechos da tese. A íntegra pode ser acessada aqui.

“Foram lançados olhares com lentes das categorias da economia, enquanto elemento do conceito de sustentabilidade ou desenvolvimento sustentável, sobre o fenômeno da extração de ouro na Terra Indígena Yanomami, com análise dos dados demonstrados no capítulo 2 desta pesquisa acadêmica. Deu-se ênfase às categorias firma, mercado e direito (COASE, 2016). Perquiriu-se as externalidades e a regulação estatal de comando e controle do fenômeno, propondo-se alternativa à atividade da garimpagem ilegal. Na ótica econômica, a vida de todos os seres humanos é permeada por escolhas. Tais escolhas são direcionadas primariamente para possibilitar o sustento próprio e da família, do grupo social e para melhoria das condições de vida daqueles que fazem o tradeoff. Entretanto, essas escolhas “podem acabar por ignorar eventuais custos e benefícios sociais, gerando externalidades, que podem ser negativas para a sociedade” (TABAK, 2015, p. 322).
Algumas pessoas decidem, consoante esse olhar econômico sobre o fenômeno estudado, como meio de sustento de vida, o exercício do garimpo de ouro na Terra Indígena Yanomami, oeste de Roraima, área de densa floresta amazônica e de dificílimo acesso. Dessa atividade econômica, que desafia leis estatais, decorrem externalidades negativas ao meio ambiente e à sociedade, com reflexos danosos diretos graves aos 22 mil indígenas residentes naquela terra indígena, em especial aos que habitam próximos aos garimpos no Rio Uraricoera (VEGA et al., 2018; FIOCRUZ, 2016). Em atividade ilícita, complexa e empresarial, há divisão de atividades entre os aproximadamente cinco mil garimpeiros que ali trabalhavam no ano de 2016 (BRASIL, 2016).
Esse fenômeno dá-se dentro de terra indígena demarcada desde o ano de 1992, em uma comunidade indígena que não inserida ao sistema econômico, cabendo destacar que “quando os economistas estudam o funcionamento do sistema econômico, estão tratando dos efeitos das ações de indivíduos ou organizações sobre outros que operam no mesmo sistema” (COASE, 2016, p. 28). A firma consiste na “organização que converte insumos em produtos” (COASE, 2016, p. 39). A firma, no garimpo, pode ser “classificada” como atividade de pequena e média mineração porque envolve, no máximo, 20 pessoas por unidade produtiva (RODRIGUES, 2017, p. 125).
O funcionamento hodierno do garimpo no Rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, se dá através de múltiplas firmas informais com divisão do trabalho entre os envolvidos. O gerente do garimpo ou da balsa é o administrador da firma, normalmente financiada por uma pessoa cujo nome não é citado ou é mesmo desconhecido por todos os trabalhadores. O gerente que tem que contratar, por exemplo, um mergulhador e uma cozinheira (normalmente do gênero feminino, como será demonstrado nos dados desta pesquisa – Capítulo 2), que se dispõem ao trabalho em condições precaríssimas na selva amazônica, pois, para o administrador no mercado garimpeiro, “a destreza de um trabalhador pode ser enquadrada na mesma categoria que uma máquina ou instrumento de trabalho que facilita e abrevia o trabalho e que, embora custe certa despesa, compensa essa despesa com lucro” (HARVEY, 2016, p. 172).
No curso do rio Uraricoera, noroeste de Roraima, no extremo norte do Brasil, em área de densa floresta, são montadas e posicionadas balsas ou dragas para extração de ouro, através de processo de sucção mecânica da terra do leito do rio ou do jateamento de barrancos às suas margens, ulteriores processos gravimétricos para separação do ouro e posterior uso do mercúrio para amalgamação, separação e coleta do ouro mediante aquecimento do amálgama, gerando emissão de mercúrio no meio ambiente e danos imensuráveis, em especial à população indígena contaminada (VEGA et al., 2018; FIOCRUZ, 2016).
Após a extração do recurso natural (RIVAS, 2014) não renovável, daqueles que “não podem ser conservados a não ser que não sejam utilizados e, neste caso, não seriam mais recursos” (WEID, 2010, p. 35), há a venda da commodity na capital de Roraima, podendo ainda ser comercializada em quaisquer outras cidades do Brasil ou do mundo, através de mecanismos de lavagem de dinheiro, para inserção do ouro extraído ilicitamente no mercado legal.
No recorte específico deste capítulo foram analisados o conteúdo de narrativas de 152 garimpeiros, dos 519 analisados inicialmente nesta pesquisa acadêmica. Garimpeiro é categoria que engloba “todos os trabalhadores envolvidos na atividade de extração de substância mineral” (RODRIGUES, 2017, p. 29). O recorte temporal se deu entre os anos de 2010 a 2017, em conteúdo ínsito em processos penais em curso na Justiça Federal em Roraima. Esses depoimentos foram selecionados em processos penais de forma qualitativa, por trazerem elementos para compreensão econômica do fenômeno.
Computou-se, nos processos pesquisados, com recorte para esta análise econômica, 116 homens e 36 mulheres, sendo 45 anos a idade média masculina e 35 anos a feminina; a maioria – 110 garimpeiros – tem baixo ou nenhum grau de escolaridade, com nível fundamental (18), fundamental incompleto (80), ou analfabetos (12).
Das mulheres, 15 afirmaram trabalhar como cozinheiras, 3 como prostitutas, 3 afirmaram exercer as profissões de cozinheira e prostituta e 1 de cozinheira e cabeleireira. Pelo trabalho, afirmaram cobrar de 2g a 3g de ouro diariamente na cozinha ou por cada programa sexual. Uma disse ser administradora do garimpo e outras 11 afirmaram-se vendedoras e 2 não declararam profissão.
Os trabalhos desempenhados no garimpo declarados pelos homens foram 31 mergulhadores, 50 garimpeiros, 9 vendedores e transportadores terrestres, 5 transportadores fluviais, 6 mecânicos, 3 removedores de resíduos de ouro aderido ao maquinário, 2 transportadores fluviais e garimpeiros, 2 carregadores, 1 transportador terrestre, 1 cozinheiro, 1 ajudante e 1 jateador de água. Quatro homens não declararam qual atividade desempenham no garimpo.
Buscando dados financeiros nos depoimentos, apuramos que o valor médio do ouro em moeda nacional foi de R$ 91,21 o grama. Em poder dos 155 garimpeiros foi apreendido um total de 2.720,9 g de ouro, sendo a maior apreensão no montante de 1500g em poder de R.O., garimpeiro nascido em 01/09/1980 em Pedreiras/Maranhão e morador de Boa Vista – Roraima, nível de instrução fundamental incompleto, que declarou profissão de pescador e, no garimpo, afirmou que é “marreteiro”, isto é, vendedor de produtos em geral para outros garimpeiros, pagando de 70 a 80 gramas de ouro por frete fluvial da mercadoria no curso do Rio Uraricoera.
O conteúdo dos depoimentos aponta ainda que cada balsa opera com aproximadamente cinco trabalhadores – o administrador, chamado de “dono”, e três mergulhadores que se revezam em turnos de 7 horas e auferem 40% da produção de ouro da balsa, indo os outros 60% ao administrador. Algumas contam ainda com cozinheiro(a) e/ou ajudante geral, que auferem salário diário em ouro, 1 a 2g/dia. Os mergulhadores manuseiam o mercúrio fornecido pelo dono da balsa, necessário na proporção média de 1g de mercúrio para extração de 1g de ouro, bem como necessitam de cilindros de oxigênio e outros equipamentos para respiração subaquática, também fornecido na logística da administração ou gerência da balsa.
A produção diária, por balsa, varia de 40 g a 100 g de ouro, com 20h de trabalho diário médio, com funcionamento em sistema de revezamento de trabalho entre os mergulhadores, gerando faturamento mensal por balsa de R$ 109.000,00 a R$ 273.000,00 decorrente da extração mensal de 1,2 a 3 quilos de ouro mensais por balsa. Para esses resultados, são utilizados de 20 a 100 g de mercúrio mensalmente por firma, o que é um dos maiores causadores de poluição e degradação da qualidade de vida Yanomami.
Cada um dos três mergulhadores fica com aproximadamente R$ 14.500,00 a R$ 36.400,00 de remuneração mensal do trabalho, sendo direcionados R$ 65.400,00 a 163.800,00 ao administrador da balsa, que é quem paga aos mergulhadores e demais trabalhadores, bem como ao financiador da firma, que aufere a maior parte dos lucros do garimpo.
Em Relatório de viagem da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, com objetivo de monitorar ilícitos na Terra Indígena Yanomami em 16 de dezembro de 2016, foi computada a atuação simultânea de 55 balsas atuando na extração de ouro no Rio Uraricoera (BRASIL, 2016), o que culminaria, com lastro na análise qualitativa dos depoimentos dos garimpeiros, em faturamento mensal de R$ 5.995.000,00 a R$ 15.015.000,00, decorrente da extração de ouro no Rio Uraricoera, ao preço de mercado do ouro na área de extração ilícita, com poluição decorrente da emissão aproximada de 13 a 66 quilos de mercúrio anuais no Rio Uraricoera e nos barrancos às suas margens.
O destino da maioria do ouro, apontado por garimpeiros, é o comércio no centro de Boa Vista, capital do Estado de Roraima, onde várias lojas ostentam na fachada a propaganda “compra-se ouro”, ou outras cidades como Itaituba, no Pará, onde a exploração de ouro é lícita e o valor de venda mais atrativo, fenômeno que será explicado no capítulo 1.3. O mercado do ouro é ostensivo em Roraima, apesar de ilícito, decorrente de sua origem ilegal em terras indígenas sem autorização do Estado”.

Alternativas para o desenvolvimento da região

Apesar de todas essas questões abordadas, os três pesquisadores consultados são unânimes ao afirmar que uma das alternativas, em termos de desenvolvimento econômico para a região, é o turismo/ecoturismo. Segundo Gutemberg, “a saída seria criar condições de trabalho para o cidadão que pensa em ir para o garimpo”. Já nos anos 2000, Becker (2005, p. 83) cita: “Se a Amazônia é efetivamente uma região, então há que se substituir a política de ocupação por uma política de consolidação do desenvolvimento. Uma política de ocupação não tem mais cabimento, porque a região já está ocupada. As florestas que restaram devem permanecer com seus habitantes. É necessário articular os diferentes projetos e os diversos interesses e conflitos que incidem na região”.
Os pesquisadores também comentaram sobre a necessidade de maior infraestrutura, em consonância com a preservação dos recursos naturais, para o desenvolvimento da região, além da constante fiscalização por parte do Estado e a regulamentação da atividade garimpeira em áreas “apropriadas” para a atividade.
Quanto ao desenvolvimento do turismo, há um forte potencial, mas com premissas relacionadas aos textos constitucionais e legislações pertinentes à prática do turismo em tais regiões e superando questões como a “objetificação do índio” para servir a interesses turísticos.
Há ainda as atividades ligadas às agroindústrias e biodiversidade na estruturação de cadeias produtivas com a utilização sustentável de frutas, sementes e demais componentes da floresta.

Referências:

BECKER, Bertha K. Geopolítica da Amazônia. ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/54s4tSXRLqzF3KgB7qRTWdg/?format=pdf&lang=pt

 

Texto: Eloiza Dal Pozzo

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