À sombra do rio Traíra: incidentes nas fronteiras do Amazonas

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Logo após o almoço no dia 26 de fevereiro de 1991, um grupo de 40 guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) atacou um destacamento do Exército Brasileiro sediado à margens do rio Traíra no estado do Amazonas. Como resultado da ação, dos 17 militares brasileiros no local 3 morreram e 9 ficaram feridos, 2 garimpeiros detidos foram feridos e acabaram morrendo também. Os guerrilheiros deixaram o local levando armas e equipamentos. A função do destacamento era coibir o garimpo ilegal na região da Serra do Traíra, que atraia garimpeiros brasileiros e colombianos. As operações nos garimpos tinham envolvimento das FARC e como as ações do destacamento dificultavam as atividades ilícitas na região as FARC planejaram o ataque ao destacamento brasileiro (Pinheiro, Mendel, 1995).

Em 1 de Maio de 2020, por volta das 18 horas, um grupo de traficantes atacou o destacamento do Exército de Ilha das Flores, no município de São Gabriel da Cachoeira-AM, para conseguir passar com um carregamento de drogas. Dos 25 militares da guarnição 1 morreu alvejado pelos traficantes. Dias antes em 22 de abril de 2020, no âmbito de uma Operação Escudo, os militares do Exército haviam feito uma apreensão significativa de drogas (Fato Amazônico, 2020). O destacamento de Ilha das Flores fica exatamente em local onde o rio Negro afunila e se concentra em uma única calha, tornando-se ideal para o controle fluvial e um problema para as atividades ilícitas. Os traficantes não estavam desavisados, desceram o rio preparados para o enfrentamento e para forçar a passagem do carregamento. Distante dois mil e novecentos quilômetros de São Gabriel da Cachoeira, em Guairá no Paraná, em 11 de maio, outro soldado faleceu quando a lancha em que estava foi abalroada por uma embarcação com contrabandistas.

Quase 30 anos separam o incidente do rio Traíra dos dois outros eventos mais recentes, mas eles guardam pontos semelhante e alertas importantes. A semelhança é a ousadia por parte da força oponente em enfrentar abertamente militares do Exército Brasileiro. Não foi uma emboscada, não foi uma troca de tiros acidental, fruto de um encontro inesperado. Em ambos os casos os opositores sabiam que enfrentariam uma guarnição militar e o fizeram. Mesmo em outros locais das fronteiras brasileiras, seja no sul (Portal Guaíra) ou centro-oeste (Amadori, 2020) e em outros países da América do Sul (France Press, 2018) isso começou a ocorrer. A perda do monopólio da violência por dos Estados nacionais e sua aquisição por parte de grupos não estatais é uma das características dos conflitos modernos (Visacro, 2020). Armas modernas de diversos calibres, sistemas de comunicação e outros equipamentos caros espelham o poder aquisitivo de cada grupo. Da mesma forma, beneficiados pelas características desta era informação esses grupos contam com uma facilidade de acesso à informações e comunicações para o planejamento e suas operações (Visacro, 2018). Podemos falar que estes grupos têm uma consciência situacional limitada, mas minimamente eficiente. Baseada em suas redes de apoio e informantes, principalmente em áreas urbanizadas (ou próximo à elas), buscam mapear os movimentos das agências do governo responsáveis por coibir os ilícitos nas fronteiras e passar essas informações para quem irá utiliza-las.

Em síntese, este é um alerta. Os grupos ligados às atividades ilícitas nas fronteiras brasileiras adquiriram capacidades e, mais que isso, confiança. São esses grupos que os soldados nas organizações de fronteira terão que enfrentar no cotidiano nas próximas décadas. Essa não é uma ameaça nova, porém está atualizada em uma versão 2.0 e no curto prazo demandará uma atualização das organizações militares, policiais e outras agências que podem se envolver em enfrentamentos com consequências.

O Brasil tem como países vizinhos grandes produtores de cocaína (Colômbia, Bolívia e Peru) e produtores de maconha (Paraguai). O Brasil é uma grande rota para distribuição destas drogas para o mercado internacional e também para o consumo interno (UN Drug Report, 2019). Na Amazônia Legal, apreensões de drogas tem aumentados nos últimos anos, inclusive com a apreensão de um semissubmersível, no Pará, na foz do rio Amazonas (Polícia Civil, 2015). A presença dos aparelhos de monitoramento, controle e segurança das fronteiras é menor nestas regiões, acompanhando a demografia dos territórios, o que deixa portas perigosamente entreabertas. Um dos desafios do Exército nas fronteiras amazônicas (Medeiros, 2020) que apenas a presença de tropas bem treinadas não consegue dissuadir (Paim et al, 2018)

Além disto, conjunturalmente neste momento, temos um agravante. Sobre a nevoa da pandemia do Covid-19 o crime organizado deve avançar em diversos países da América Latina nos próximos meses (Ellis, 2020; Sampó, 2020). Aproveitando-se, tanto da fragilização das populações devido à crise econômica; quanto a sobrecarga de diversas agências ligadas à segurança e defesa, com pessoal afastado por questões de saúde e com uma série de operações voltadas à resposta ao Covid-19 que desviam homens e recursos.

A atenção as guarnições e operações de pequeno porte na Faixa de Fronteira devem receber uma atenção especial, sob o risco de perdermos mais soldados para um inimigo cada dia mais disposto à enfrentamentos de pequenas frações, sejam do Exército, ou de outros agentes de segurança pública.

*Autor: Tassio Franchi – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME)

REFERÊNCIAS

  1. Amadori, Rosane. Apreensões de drogas e contrabando de cigarros crescem mais de 800% nas fronteiras brasileiras. Disponível em: <http://www.idesf.org.br/2020/05/25/trafico-de-drogas-cresce-mais-de-800-nas-fronteiras-brasileiras/> Acessado em 27 de maio de 2020.
  2. Ellis, Evan. COVID-19: Shaping a Sicker, Poorer, More Violent, and Unstable Western Hemisphere. Strategic Studies Institute (SSI) Carsale, PA, USA. 2020. Disponível em: https://ssi.armywarcollege.edu/wp-content/uploads/2020/05/COVID-19-Unstable-West-Hem_Ellis_v2.1_post.pdf Acessado em: 18 de maio de 2020.
  3. Fato Amazônico. Traficantes furam bloqueio do exercito trocam tiros e militar morre. Disponível em: <https://www.fatoamazonico.com/em-sao-gabriel-da-cachoeira-traficantes-furam-bloqueio-do-exercito-trocam-tiros-e-militar-morre/> Acessado em 21 de maio de 2020.
  4. France Press. Bolívia confirma que Comando Vermelho atacou guarnição militar (2018). Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/bolivia-confirma-que-comando-vermelho-atacou-guarnicao-militar.ghtml> Acessado em 21 de maio de 2020.
  5. JÚNIOR, Menezes Teixeira; WAGNER, Augusto; NOBRE, Fábio Rodrigo Ferreira. Plano Colômbia: implicações para o Brasil. World Tensions/Tensões Mundiais, v. 6, n. 10, 2010. p. 265-285.
  6. Medeiros Filho, O. (2020). Desafios do Exército Brasileiro nas fronteiras amazônicas. Coleção Meira Mattos: revista das ciências militares, 14 (49), 77-97.
  7. Pinheiro, Álvaro de Souza; Mendel, William W. Guerrilla in the Brazilian Amazon. Military Review. julho de 1995. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20170628000650/http://fmso.leavenworth.army.mil/documents/amazon/amazon.htm> Acessado em: 8 de maio de 2020.
  8. Polícia Civil. Polícia Civil remove para Belém submarino apreendido em Vigia-de-Nazaré. (21/12/2015) Disponível em: <http://www.policiacivil.pa.gov.br/pol%C3%ADcia-civil-remove-para-bel%C3%A9m-submarino-apreendido-em-vigia-de-nazar%C3%A9> Acessado em 23 de maio de 2020.
  9. Portal Guaíra. Soldado do Exército de 19 anos segue desaparecido no Rio Paraná. Disponível em <https://www.portalguaira.com/guaira-soldado-do-exercito-de-19-anos-segue-desaparecido-no-rio-parana/> Acessado em 11 de maio de 2020.
  10. Sampó, Carolina. Latin America: Organized Crime Taking Advantage of COVID-19. Disponível em: https://aulablog.net/2020/05/22/latin-america-organized-crime-taking-advantage-of-covid-19/ Acesado em: 21 de Maio de 2020.
  11. Souto, J. C. F., de Almeida Paim, R., & Franchi, T. (2018). As escolas de selva como fator de dissuasão na Pan-Amazônia: análise de caso dos exércitos equatoriano e brasileiro. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 5(2).
  12. United Nations. World Drug Report 2019. Austría: United Nations publication. 2019. Disponível em: <https://wdr.unodc.org/wdr2019/> Acessado em 25 de maio de 2020.
  13. Visacro, Alessandro. A guerra na era da informação. Editora Contexto, 2018.
  14. Visacro, Alessandro. Não basta vencer em múltiplos domínios. Coleção Meira Mattos: revista das ciências militares, v. 14, n. 50, p. 187-209, 2020.

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