A Zona Franca e a visita do presidente do Paraguai ao Brasil – Por Micael Alvino

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Em 1960, um convênio firmado entre o governo Stroessner e a Foreign Markets Trading Company criou a Zona Franca de Cidade do Leste. Na ocasião, o diplomata Gomes Pereira reportou ao Itamaraty que tratava-se de um “centro de contrabando em larga escala para o Brasil” (apud CERVO, 2001, p. 213). Passados 57 anos, a visita do presidente do Paraguai, Horácio Cartes, ao Brasil – no último 21 de agosto de 2017 – é oportuna para avaliarmos a hipótese de Gomes Pereira e sua aplicação no presente.

Se existe um lugar na América do Sul que pode sintetizar as relações internacionais contemporâneas entre o Brasil e o Paraguai, este lugar é a Tríplice Fronteira – onde encontram-se as cidades paraguaia de Cidade do Leste e brasileira de Foz do Iguaçu. Além da faraônica Itaipu Binacional, a Ponte da Amizade conecta os quase 300 mil habitantes do lado brasileiro aos mais de 550 mil habitantes do lado paraguaio – além dos 80 mil argentinos residentes em Porto Iguaçu (SILVA, 2014).

Ao descrever a região, o antropólogo Fernando Rabossi definiu que trata-se de uma região interconectada, caracterizada pela diversidade cultural decorrente da presença de pessoas de origens distintas, articulada transnacionalmente e movida por uma economia comercial baseada em fluxos de produtos e pessoas, que muitas vezes se inscrevem fora da legalidade (RABOSSI, 2011, p. 41).

A classificação “muitas vezes fora da legalidade” é uma forma sutil de referir a região. Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, a imagem da região era bem conhecida: comboios de ônibus com mercadorias de contrabando e descaminho vindas do Paraguai, logravam burlar a ineficiente fiscalização policial (PARO, 2016). No início dos anos 2000, contudo, dois movimentos internacionais afetariam a abordagem brasileira na região. O primeiro, em 2001, foi o ataque terrorista aos Estados Unidos de 11 de setembro; e o segundo foi a inclusão do Brasil na “lista negra da pirataria” da União Europeia em 2006.

A imediata Guerra ao Terror do governo Bush trouxe em evidência uma acusação da década anterior. Sobre Tri-Border Area, como é conhecida a região nos meios militares e diplomáticos dos Estados Unidos, intensificou-se a acusação de ser uma potencial zona de financiamento do terrorismo internacional. Internacionalmente, a região enquadrava-se no contexto de “safe haven” – uma área não governada ou, no caso específico, sub-governada pelo Estado (FERREIRA, 2016).

O entendimento da região como área sub-governada também era devido ao segundo movimento no âmbito das relações internacionais que mencionamos. Depois de muitas acusações informais, cobranças governamentais e ameaça de levar o tema ao âmbito da Organização Mundial do Comércio, a União Europeia incluiu o Brasil em uma espécie de “lista negra da pirataria” no ano de 2006. O motivo era o volume de cigarros, cds e outros produtos fabricados na China e que ingressavam no país via Paraguai (UCHOA, 2006).

A resposta aos movimentos das relações internacionais, ainda que não cronologicamente em paralelo às acusações, ocorreram desde três frentes: 1) desde a diplomacia, a Comissão 3+1 reuniu Argentina, Brasil, Paraguai e Estados Unidos; 2) desde a cooperação policial internacional criou-se o Comando Tripartite – que reúne atuação conjunta das forças policiais da Argentina, Brasil e Paraguai na Tríplice Fronteira (BORDIGNON, 2016); e 3) a reforma da estrutura aduaneira em Foz do Iguaçu. Sobre esta última, a Receita Federal inaugurou uma moderna aduana na divisa entre os países. Além disso, um plano de atuação de inteligência assegurou a efetividade do combate à imagem da região associada aos comboios de ônibus de contrabando. Pode-se dizer que o trabalho de inteligência e repressão pôs fim aos comboios e à era dos sacoleiros.

Passados mais de dez anos, a prosperidade econômica de Cidade do Leste indica que o fim da era dos sacoleiros não significou o fim do comércio. E, se o comércio da zona é voltado aos brasileiros, pouco provável que a estrutura seja mantida apenas pelos turistas de classe média que sazonalmente visitam a região. Os estudos do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF, 2015; 2016), oferecem boas hipóteses ao apresentar os dados das operações de segurança nas áreas de fronteira e as rotas do contrabando e descaminho no Brasil. Mais do que hipóteses, os dados demonstram que o volume de ilícitos que ingressam no território brasileiro via Paraguai é elevado.

Chamamos a atenção para outra análise possível do volume e do impacto do contrabando e do descaminho na atualidade. Se combinamos o fim da imagem da era dos sacoleiros e os dados atuais da balança comercial entre o Brasil e o Paraguai os resultados são animadores. A diferença entre exportações e importações em 2016, por exemplo, foi de US$ 997.637.417 a favor do Brasil (dados do Ministério da Indústria e Comércio). Considerando que os membros das forças de segurança, dentre elas da Receita Federal, estimam que algo em torno de 5% do que entra ilegalmente no Brasil é apreendido, se adicionarmos este percentual à balança comercial o resultado é bem menos animador. Neste cenário, considerando que a Receita Federal contabilizou US$ 67.434.555 em apreensões (apenas em Foz do Iguaçu) em 2016, o saldo da balança comercial seria de US$ 351.053.683 em favor do país vizinho.

Nesta lógica, os dados que os Ministros das Relações Exteriores do Brasil e do Paraguai apresentaram na reunião de 21 de agosto aos presidentes Michel Temer e Horácio Cartes, podem apresentar uma distorção importante, mas que estando oculta beneficia a ambos. O Brasil contenta-se com a balança comercial favorável e o Paraguai não precisa explicar o motivo pelo qual, de fato, a balança comercial lhe favorece.

Contextualizando a problemática, estamos diante da prática de criminosos transnacionais – aos quais pertencerá o século XXI (ROBINSON, 2003). O contrabando (incluindo o descaminho), é um grande problema que afeta a segurança humana tanto do Brasil quanto do Paraguai. Seu enfrentamento, portanto, só será efetivo se partir de ambos. Mas, o tema não fez parte da agenda bilateral discutida entre ambos os chefes de Estado em Brasília. E nem poderia. O convidado de Michel Temer é dono da Tabacalera Del Este e responsável por cerca de 30% do cigarro produzido no Paraguai. Somente 5 das 11 marcas que este percentual representa, respondem a 49% do cigarro contrabandeado para o Brasil (KONIG, 2014).

Nesta lógica, a ideia de que a zona franca é um centro de contrabando em larga escala para o Brasil segue vigente, assim como a cumplicidade e a omissão de autoridades de ambos os lados (CERVO, 2001, p. 213). As medidas que afastaram a imagem dos comboios de ônibus da Tríplice Fronteira parecem ter sido respostas a problemáticas internacionais ligadas ao enfrentamento dos crimes transnacionais de interesse dos Estados Unidos e da Europa. Enquanto o comércio internacional ilegal não for considerado um problema nacional, a exigir resposta nacional, tanto do Brasil quanto do Paraguai (avançando para a esfera transnacional), a hipótese de Gomes Carneiro estará válida.

Referências bibliográficas

BORDIGNON, Fabiano. Ultrapassando fronteiras: cooperação policial internacional e o exemplo do Comando Tripartite na Tríplice Fronteira Argentina, Brasil e Paraguai. In: LUDWIG, F. J.; BARROS, L. (Re)definições das fronteiras: Visões Interdisciplinares. Curitiba: Juruá, 2016. P. 71-92.

CERVO, A. L. Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. Brasília: IBRI, 2001.

FERREIRA, M. Combate ao Terrorismo na América do Sul: Uma análise compara das políticas do Brasil e dos Estados Unidos para a Tríplice Fronteira. São Paulo: Prismas, 2016.

IDESF – INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DE FRONTEIRAS. Operações de Segurança nas áreas de Fronteira. Foz do Iguaçu: IDESF, 2015.

IDESF – INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DE FRONTEIRAS. Rotas do crime: as encruzilhadas do contrabando. Foz do Iguaçu: IDESF, 2016.

KONIG, M. Gerente de Cartes diz que cigarro é legal. Disponível em: <https://goo.gl/NWgvmh>. Acesso em: 24 de março de 2014.

PARO, D. Foz do Iguaçu: do descaminho aos novos caminhos. Foz do Iguaçu: Epígrafe, 2016.

RABOSSI, F. Como pensamos a Tríplice Fronteira? In: BÉLIVEAU, V. G.; MACAGNO, L.; MONTENEGRO, S. (orgs.). A Tríplice Fronteira: espaços nacionais e dinâmicas locais. Curitiba: EDUFPR, 2011, p. 39-62.

ROBINSON, J. A Globalizac?a?o do crime. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

SILVA, M. Breve História de Foz do Iguaçu. Foz do Iguaçu: Epígrafe, 2014.

UCHOA, P. Brasil entra em “lista negra da pirataria” europeia. Disponível em: <https://goo.gl/VnKDGi/>. Acesso em 5 de outubro de 2006.

Sobre o autor

Micael Alvino da Silva é Doutor pela USP, professor de Relações Internacionais na UNILA e membro do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (CNPq). Grato a Alexandre Barros pelos dados sobre a balança comercial.

Como citar este artigo

Mundorama. “A Zona Franca e a visita do presidente do Paraguai ao Brasil, por Micael Alvino”.Mundorama – Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 30/08/2017]. Disponível em: <https://www.mundorama.net/?p=23890>.

Fonte: https://www.mundorama.net/?p=23890

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